OPINIÃO

As ranhuras no prédio do Instituto Rio Branco

'Ainda somos um ministério majoritariamente masculino e branco', discursou oradora da turma mais diversa já formada pelo Ministério das Relações Exteriores

Por Ivânia Vieira
18/09/2024 às 10:25.
Atualizado em 18/09/2024 às 10:26

Ana Cecília Sabbá na cerimônia de Formatura do Instituto Rio Branco, no Palácio do Itamaraty (Ricardo Stuckert / PR)

Assisti, gravada, a cerimônia de formatura da Turma 2024 do Instituto Rio Branco, ocorrida no dia 16 de setembro. Alguns atos chamam atenção: palco, plateia, bastidores, o "teatro social" na criação do sociólogo Erwing Goffman. O ritual remete às performances dos nossos papeis sociais específicos.

Recorto e reproduzo o discurso da oradora da turma, Ana Cecília Sabbá, de Belém (PA), escrito por ela e pela colega de turma, Patrícia, de Porto Velho (RO). “Não há outra maneira de começar esse discurso senão dizendo o que ouvimos por dois anos: somos a turma mais diversa e mais representativa da história do Ministério das Relações Exteriores. Somos 42% de mulheres, recorde de pessoas negras e, em particular, recorde de mulheres negras. Todas as regiões do país estão aqui representadas, até a região Norte, tradicionalmente marginalizada dos espaços de poder {...}

“Sim, nós somos a turma mais diversa, e nos enchemos de orgulho disso, mas, apesar dos avanços, não podemos achar que finalmente conquistamos um Itamaraty plural e diverso. Onde estão os indígenas? Conseguimos realmente incluir pessoas com deficiência? Somos uma tendência ou um ponto fora da curva? Há lugar no Ministério para mais mulheres de Belém, Paudalho, São Luís do Maranhão, Porto Velho, Duque de Caxias, João Pessoa e Caçu?

{...} ainda somos um ministério majoritariamente masculino e branco. Mantemos um teto de vidro que impede a maioria das mulheres de chegar aos cargos mais altos e chefiar os postos mais importantes. Ainda precisamos de mais ações que possibilitem a paridade de gênero na entrada e que permitam que a diplomacia brasileira tenha, de fato, a cara do país, em todos os níveis hierárquicos.

{...}O espaço que ocupamos hoje não é fruto de uma luta somente nossa. Somos filhos da luta de muitas outras que vieram antes de nós. Da luta de Mônicas, de Marielles, de Milenas, de Marias José e de Esperanças.

Escolhemos Esperança Garcia para nomear nossa turma pela sua coragem. Ela, uma mulher negra, escravizada, que, em 1790, reivindicou o direito humano mais essencial – o de existir. Era um tempo em que pessoas negras não eram consideradas pessoas. Um tempo em que uma escravizada como ela nunca poderia ir a uma universidade e alcançar uma tribuna. Ainda assim, Esperança escreveu uma carta ao presidente da província do Piauí, pedindo o fim dos maus-tratos. Essa carta, carregada de teor jurídico, comprova que Esperança Garcia foi a primeira advogada deste país. 

Mas ela não entrou para a história como uma heroína. Descobrimos sua existência por um acaso, na nota de rodapé de um livro. Não aprendemos sobre ela na escola, e nenhum jurista dessa turma se debruçou sobre sua carta no curso de graduação”. 

A carta escrita por Esperança Garcia, aos 19 anos de idade, é uma petição onde denuncia maus-tratos e reivindica direitos. Um documento destinado ao presidente da província de São José do Piauí, escrito de próprio punho. Só foi encontrado 200 anos depois. Por esse gesto Esperança Garcia é considerada a primeira mulher advogada do Piauí e, quem sabe, será também a do Brasil, e é referência – pouco conhecida – da luta e da resiliência do povo preto e das mulheres pretas.

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