OPINIÃO

O ritual de Clarice e Davi

Defesa da dissertação de Clarice Arbella construiu possibilidades de a universidade avançar na relação com os povos indígenas

Por Ivânia Vieira
11/09/2024 às 15:41.
Atualizado em 11/09/2024 às 15:41

Era início da tarde de sexta-feira, 7 de junho de 2024. O sol de Manaus se pôs bonito sob a namoração do vento afoito fazendo dançar os galhos e os reflexos da luz solar criando brechas entre as folhas. Um suave farfalhar de sons. Da cozinha vinham os cheiros sem fronteira, espalhando-se em nós. Fome de comer conhecimento.

A oca da Associação das Mulheres Indígenas do Alto Rio Negro (AMARN)  estava cheia, gente sentada, em pé, encostada. Os parentes e amigos de Clarice Gama da Silva Arbella estavam lá e também em São Gabriel, acompanhando virtualmente a celebração do conhecimento acadêmico entrelaçado ao conhecimento dos povos originários, das mulheres indígenas.

A “defesa” pública da dissertação de Clarice Arbella – “O protagonismo político das mulheres Indígenas do Alto Rio Negro – a construção da Associação das Mulheres Indígenas do Alto Rio Negro em Manaus (1987 – 2021)” – reanimou a tradição, rompeu amarras e construiu possibilidades de a universidade avançar na relação com os povos indígenas, tornando natural o que é exceção.

As mulheres AMARN estavam à frente da celebração.  Cantaram, dançaram, movimentaram os maracás antes do início da apresentação do trabalho de pesquisa e, depois, com a dissertação aprovada. Numa grande roda de alegria e de emoção, de mãos dadas carregando homens e mulheres para ser parte.    

Da pesquisa destaco a percepção de Clarice Arbella de que “pontos importantes” nos debates políticos sobre a defesa dos direitos indígenas passam despercebidos. São esses “pontos”, na perspectiva da mulher indígenas, que o estudo aborda, a partir do pensamento indígena em diálogo com outros autores.

Autores/as indígenas e da Região Amazônica estão presentes. Da histórica exclusão às brechas apertadas e, hoje, janelas abertas na batalha pelo acesso, por meio de portas largas, abertas, receptivas ao conhecimento indígena. Clarice nos diz de outro modo: cansamos de ser só o objeto de estudos; somos autores/as!

A AMARN se revela livro que se constrói em escritos diários, visibilizados ou silenciados, sempre acrescendo páginas plurais de conhecimento dos povos originários, a partir das mulheres, das suas artesanias política, econômica, gastronômica, do vestuário, dos acessórios, das artes que cantam e dançam, da educação e da cultura. A dissertação de Clarice trata dessa pluriversidade: AMARN é casa, escola, maloca, território dos acontecimentos.

A partir data do colonizador, foram necessários 524 anos dos quais 115 de Universidade Federal do Amazonas e 37 de AMARN para termos a primeira defesa pública de mestrado, na sede da associação, em Manaus, a mais indígena das cidades brasileiras e um dos espaços onde o racismo vibra alto. Clarice e Prof. Davi Leal, seu orientador, no Programa de Pós-Graduação em História (PPGH/UFAM), fincaram esteios e os amarraram em gesto efetivo com fios de tucum ou de arumã, revelando a luz que precisam do escuro para brotar.

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